Sermão do Monte


O trecho abaixo é parte de um livro muito bom que gostaria de indicar . Philip Yancey escreve sobre experiências que teve em dez países e na capa interna do livro escreve assim:

"Minhas aventuras jornalísticas se tornaram para mim uma forma de verificar a verdade daquilo que escrevo. Poderá o "Deus de toda Consolação" trazer realmente consolo a um lugar ferido como Mumbai ou ao campus de Virginia Tech? As cicatrizes do racismo no sul dos EUA, sem falar na Africa do Sul, serão curadas algum dia? Uma minoria cristã será capaz de provocar alguma fermentação num ambiente hostil como o da China ou do Oriente Médio? Faço-me essas perguntas todas as vezes que assumo uma tarefa desafiadora."
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Os pobres, os prisioneiros, os cegos, os oprimidos - grupo mencionados no primeiro sermão de Jesus - são uma forte sugestão de seu estilo de ver o mundo de cabeça para baixo. Os pobres são realmente abençoados, diria ele nas bem-aventuranças, e também os mansos, os perseguidos e aqueles que choram. Para enfatizar esse ponto, muitas das histórias de Jesus apresentam a pessoa menos provável - um vira-lata, poderíamos dizer - como herói.

Jesus contou uma história sobre dois homens: um rico e bem-sucedido; o outro um mendigo coberto de chagas. Lázaro, o mendigo, se destaca como o óbvio herói; Jesus nem sequer atribui um nome ao homem rico. Em outra história, dois profissionais religiosos com conhecida ascendência ignoram a vítima de um crime; um herege mestiço, o bom samaritano, emerge como herói. Naquela que talvez seja sua mais famosa história, Jesus elogia não o irmão obediente, responsável e respeitador de seus pais, mas o rebelde e perdulário, o Filho Pródigo.

Não apenas as histórias de Jesus, mas também seus contatos pessoais apresentam esse modelo da inversão. E de fato analisei os evangelhos e fiz um gráfico informal dos contatos de Jesus. Com poucas exceções, quanto mais justa, consciente e até mesmo virtuosa for a pessoa, tanto mais Jesus a ameaça. Quanto mais imoral, irresponsável, excluída socialmente for ela - em outras palavras, menos parecida com ele mesmo - tanto mais Jesus atrai essa pessoa (o que acontece que os seguidores de Jesus geralmente fazem o contrário?). O dom gratuito da graça desce sobre quem a quiser receber, e as vezes aqueles que não tem a quem recorrer são os mais ansiosos por estender sua mão aberta.

Num exemplo claro, registrado em João 4, uma mulher não tem praticamente nada em comum com Jesus. Samaritana desprezada, habituada ao preconceito racial, ela se surpreende ao ver que um rabino judeu se digna dirigir-lhe a palavra, sem falar em beber de seu vaso "impuro". Os discípulos de Jesus parecem chocados quando o veem contrariar costumes culturais conversando com uma mulher desconhecida. Se alguém da aldeia estivesse vendo a cena, sem dúvida essa pessoa questionaria a prudência de Jesus conversando com essa mulher, pois logo fica evidente que ela tem um histórico de cinco casamentos fracassados e está morando com um homem que não é marido dela.

A mulher representa enormes diferenças em relação a Jesus: raciais, sociais, morais e religiosas. Na conversa que tiveram, Jesus passa por cima dessas diferenças. Ele desvia das observações diversivas dela sobre famosos ancestrais e sobre onde adorar, e em vez disso, ele se aprofunda na necessidade humana mais básica que ela compartilha com todos os outros: sede. Ele está falando tanto no sentido literal quanto no figurado, uma vez que cada compulsão sexual, cada vício no fundo se revela como um falso deus incapaz de satisfazer nossa mais profunda sede. Depois Jesus continua falando-lhe da água viva capaz de matar a sede.

Em todos os quatro evangelhos, somente aqui vemos Jesus apresentado-se a alguém como o Messias. É dessa mulher, cujo  histórico a desqualificaria para exercer a maioria das funções religiosas que conheço, que Jesus se utiliza como sua primeira missionária. Ele escolhe bem, pois muitos samaritanos se tornam seguidores de Jesus em consequência dessa mais improvável testemunha. "Este [homem] é verdadeiramente o  Salvador do mundo", eles logo exclamaram dirigindo-se à mulher. Graças a ela, eles também descobrem alguém que os vê como destinatários do amor transformador, e não do julgamento de Deus, e alguém que avalia não o que eles foram, mas o que poderiam ser.

Sem dúvida Jesus nos deu essas histórias e abraçou os rejeitados para anular o que ele sabia ser nossa tendência humana de classificar e dividir. Como o Sermão do Monte deixa claro, as pessoa que correm mais perigo são aquelas que julgam ter chegado, pois agindo assim elas perdem o benefício da graça. Somente os que têm consciência da sede procuram água viva.

Trecho do livro  "Para que serve Deus" de Philip Yancey