O Espírito dos Casamentos Arranjados




Você já pensou sobre quanto nosso Produto Interno Bruto depende do romance? Ele domina as artes: sintonize qualquer estação de rádio que toque música popular e tente encontrar uma canção que não trate do amor. Na área editorial, os romances góticos vendem mais do que qualquer outro estilo de livros. E existe alguma novela ou comédia sem um romance ardente entretecido no enredo? Frases como "conseguir um homem" e "perseguir uma mulher" resumem um fato da vida em nossa cultura e presumimos que em todas as outras também. A vida é assim, pensamos nós.

Ah, mas aqui há um fenômeno notável: ainda hoje, em nossa aldeia global, mais da metade de todos os casamentos acontecem entre um homem e uma mulher que jamais sentiram qualquer pontada de amor romântico e talvez nem mesmo reconheçam o sentimento, se acontecer com eles. Adolescentes na maior parte da África e da Ásia tem como certa a noção dos casamentos arranjados por seus pais, assim como nós é certa a noção do amor romântico.

Um jovem casal de indianos, Vijay e Martha, explicaram-me como foi o casamento deles. Os pais de Vijay avaliaram todas as garotas de seu círculo social antes de se decidirem por uma chamada Martha para ser a noiva de seu filho. Ele tinha 15 anos na ocasião e ela acabara de completar 13. Os dois só haviam se encontrado uma vez antes, e muito rapidamente. Mas, depois que os pais dele chegaram a uma decisão, reuniram-se com os pais dela e marcaram a data do casamento para dali a oito anos. Depois que combinaram tudo, contaram aos filhos com quem eles iriam se casar e quanto.

Durante os oito anos seguintes Vijay e Martha tiveram a permissão de escrever uma carta por mês. Viram-se duas - apenas duas -  vezes, e muito bem acompanhados, antes da data do casamento. Mesmo assim, hoje o casamento deles parece ser tão seguro e amoroso quanto qualquer outro que conheço. Na verdade, missionários que vivem nestas sociedades relatam que, regra geral, os casamentos arranjados são mais estáveis, com a taxa de divórcios muito menor do que a dos que resultam de romance.

Nas culturas ocidentais as pessoas se casam  porque sentem atração pelas qualidades agradáveis do outro: sorriso aberto, espirituosidade, aparência bonita, habilidade atlética, bom humor, charme. Com o passar do tempo estas qualidades se alteram. Enquanto isso, podem aparecer surpresas: desleixo no cuidado da casa, tendência à depressão, problemas sexuais. Ao contrário de tudo isso, os companheiros em um casamento arranjado não baseiam o relacionamento na atração mútua. Ao ser informada da decisão dos pais, a pessoa aceita que viverá muitos anos com alguém a quem mal conhece. Assim, a questão deixa de ser "Com quem me devo casar?" e passa para " Que tipo de casamento eu e este meu companheiro construiremos?"

Duvido muito de que o Ocidente algum dia venha a abandonar a ideia de romance, a despeito da base fraca que ele constitui para a estabilidade familiar. Mas, nas conversas que mantenho com cristãos das mais diversas culturas comecei a ver como o "espírito dos casamentos arranjados" poderia transformar outras atitudes. Poderíamos aprender alguma coisa sobre as nossas expectativas quanto à vida cristã, por exemplo.

Sempre achei estranha a fixação da teologia moderna com o problema do sofrimento. As pessoas em nossa sociedade vivem mais tempo, com saúde muito melhor e com menos sofrimento físico do que em qualquer outra época da história. E ainda assim nossos artistas, escritores, filósofos e teólogos se atrapalham na procura de novas formas de apresentar as questões milenares de Jó. Por que Deus permite tanto sofrimento? Por que Ele não intervém? E é significativo notar que os brados não partem do Terceiro Mundo - onde a miséria grassa - ou de pessoas como Solzhenitsyn, que suportou enorme sofrimento. O grito angustiado parte basicamente daqueles dentre nós que vivem no Ocidente confortável e narcisista. E por pensar nesta tendência estranha que continuo a voltar ao paralelo com os casamentos arranjados, que se transformou para mim em uma espécie de parábola sobre as formas diferentes pelas quais as pessoas se relacionam com Deus.

Algumas aproximam-se da fé basicamente como uma solução para seus problemas, e escolhem Deus assim como escolhem o cônjuge, procurando as qualidades agradáveis. Sua expectativa é a de que Deus sempre lhe tratá boas coisas. Dão o dízimo porque receberão de volta dez vezes mais. Tentam levar uma vida reta porque acreditam que Ele lhes dará prosperidade. Interpretam a frase "Jesus é a resposta" em seu sentido mais literal e inclusivo: a resposta para o desemprego, um filho com problemas mentais, um casamento em ruínas, uma perna amputada, um rosto feio etc. Contam como certo que Deus interferirá em seu favor; providenciando um emprego; curando o filho, a perna e o rosto feio e colando de volta os pedaços do casamento partido.

Em meio a tudo isso, precisamos continuar a levantar o problema do sofrimento, exatamente porque a vida não é sempre como gostaríamos de que fosse. Realmente, em muitos países, ao tornar-se cristã a pessoa pode ter certeza de que perderá o emprego, será rejeitada pela família, enfrentará o ódio social e talvez, até, seja presa. Em seu maravilho livro "The Mind of the Maker", Dorothy Sayers sugere um outro modo de enxergar o envolvimento de Deus conosco. Afirma em palavras que merecem muita reflexão:

" O artista não vê a vida como um problema a ser solucionado, mas como um agente da criação."

Somo como artistas que receberam a incumbência de construir nossa vida a partir de uma massa sem forma de matéria-prima. Uns são feios, outros bonitos. Há os brilhantes, os profundos, os charmosos

Sob esse aspecto, precisamos do "espírito dos casamentos arranjados" em nosso relacionamento com Deus. Ele me criou como sou: com meus traços físicos particulares, minhas dificuldades e limitações, meu corpo, minha capacidade mental. Posso passar toda a vida ressentido com uma característica ou outra, e pedindo a Deus que mude minha "matéria-prima". Ou posso aceitar-me como sou, humildemente, com as falhas e tudo mais, como a matéria-prima com a qual Deus pode trabalhar. Não faço uma lista de exigências que precisam ser atendidas para que eu aceite firmar um compromisso. Como o marido de um casamento arranjado, comprometo-me apesar do que acontecerá no futuro. Não tenho certeza do que está por vir.

Pode-se dizer que fé significa prometer estar junto no melhor ou no pior, na riqueza ou na pobreza, na doença ou na saúde, amando a Deus ou apegando-se a Ele, apesar do que vier a acontecer. Felizmente, o "espírito do  casamento arranjado" funciona nos dois sentidos: Deus também firma um compromisso comigo. A fé significa acreditar que Ele fez a mesma promessa, e Jesus Cristo é a prova disso. Deus não me aceita condicionalmente, com base em meu desempenho. Ele mantém Sua promessa, e nela reside a graça.

Philip Yancey

2 comentários:

  1. Melissa, há muito tempo havia vindo aqui e relido este artigo do Philip Yancey e o guardara lá no nosso blog, imaginando que chegaria o dia de publicá-lo lá também. Escrevo para dizer que o estou publicando lá e indicando a fonte do seu blog.

    Muito abrigado.

    Abraços sempre muito afetuosos.

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